Ontem, sábado dia 24 de agosto, acabei de dar um curso sobre elaboração de projetos sociais, convidada pelo CEAP – Centro de Articulações de Populações marginalizadas, e hoje me deparo com esse excelente artigo de Henrique Iafelice. Não resisti, repasso por aqui. Ele reflete tudo o que penso e tento repassar com minha práxis.
Este pequeno vídeo, se chama: “aprender a aprender” que por imagem transmite o mesmo recado do artigo que replico abaixo:
“Deleuze nos diz que o pensar sempre se faz a partir de encontros, de afetos ou signos. Algo nos força, nos violenta, nos impele a pensar. Muito foi dito sobre a boa natureza do pensamento, ou seja, imagina-se o pensamento como algo que possui em si mesmo uma boa vontade para o pensar. A própria tradição filosófica foi a responsável por afirmar a boa vontade do pensamento em conhecer. Todos nós conhecemos a famosa frase de Aristóteles no início de sua obra Metafísica: “Todos os homens, por natureza tendem ao saber”. Esta imagem do pensamento inaugurada pela Filosofia está presente no próprio pensar como seu pressuposto, determinando assim toda e qualquer forma de pensamento. A imagem do pensamento é o pano de fundo ou o pressuposto do pensar que, neste caso, em vez de revelar a natureza violenta do pensamento, atribui a ele uma natureza dócil e de boa vontade. “O bom senso ou o senso comum naturais, são, pois, tomados como a determinação do pensamento puro”. (DELEUZE, 2006b, p. 194). O filósofo, a partir da imagem do pensamento, afirma que o pensador quer o verdadeiro, pois é da natureza do pensar amar a verdade. Assim, de forma premeditada, a imagem do pensamento determina a própria busca do pensador: ele, enquanto pensador, está determinado a buscar o verdadeiro.
Deleuze nos convida a duvidar desta boa natureza do pensamento, ou seja, desta imagem do pensamento presente na própria Filosofia:
Quando a filosofia encontra seu pressuposto numa imagem do pensamento que pretende valer de direito, não podemos, então, contentar-nos em opor-lhes fatos contrários. É preciso levar a discussão para o plano de direito e saber se esta imagem não trai a própria essência do pensamento como pensamento puro. (DELEUZE, 2006b, p.194).
Em seu livro Proust e os signos, Deleuze diz que Proust “tocou no essencial quando afirmou que “as verdades permanecem arbitrárias e abstratas enquanto se fundam na boa vontade do pensar. (DELEUZE, 2003, p. 89). A própria palavra “filósofo” já revela em si mesma esta arbitrariedade. Inversamente do que muitos pensam, a palavra amigo revela uma fraqueza: os amigos buscam se afastar dos conflitos de ideias; eles se afirmam a partir do próprio convencionalismo, pois uma exposição de suas diferenças poderia abalar a própria essência da amizade que os une. Todos os amigos parecem afirmar um certo acordo de significações, e se tal acordo não se estabelecer, fatalmente a amizade será de alguma forma abalada em sua própria estrutura. Assim, a amizade se estabelece, antes de tudo, no convencionalismo de opiniões e ideias. Tanto a Filosofia quanto a amizade, diz Proust, se distanciam da busca da verdade. De acordo com Deleuze: “Sem algo que nos force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. “Mais importante do que o pensamento é o que ‘dá a pensar’; mais importante do que o filósofo é o poeta”. (Deleuze, 2003, p. 89). É somente a partir dos afetos, ou seja, dos encontros, que podemos ir além das nossas próprias opiniões e limites. Afastados daquilo que nos movimenta, não podemos sair do campo dos determinismos inteligíveis da representação ou da base identitária de um “eu” psicológico.
Percebe-se que o pensamento como boa vontade não abre espaço para a criação. O ato criativo se faz sempre a partir de um encontro, de algo que involuntariamente nos desloca e nos afeta, desestabilizando nossas próprias certezas, abrindo em nós um espaço para o impensável do próprio pensar. Nossa educação escolar, de forma geral, parece desconhecer o valor do encontro, do involuntário, dos afetos e dos signos que nos impelem a pensar. Ao contrário, parece reconhecer apenas as verdades aprendidas pela representação ou pela recognição que têm como fundamento apenas imagens e semelhanças com algo já-conhecido, um já-pensado, com um saber já-pronto e acabado.
O problema, porém, reside no fato de que terminamos por confundir o “reconhecer” com o “pensar”. Ora, o pensamento não tem uma função meramente recognitiva; aliás, ele não tem jamais tal função – se o tomamos em seu aspecto criativo [...]. Somente o pensamento, enquanto potência criadora, pode romper definitivamente com a representação e a recognição e apreender as coisas em sua singularidade, em sua diferença essencial. (SCHÖPKE, 2012).
O modelo pedagógico tradicional é efeito e resultado de uma “imagem do pensamento” que se afirmou na própria tradição filosófica. Tal modelo se estabeleceu na afirmação de um pensamento que, indiferente a toda forma de devir, buscou a certeza do permanente, ou seja, na determinação da forma, da substância ou ainda do sujeito do conhecimento. Contrariamente a esta tradição, Deleuze afirma uma outra forma de aprendizado não baseada nas recognições ou nas representações comuns à Filosofia. Segundo Deleuze, o que o filósofo postula como universalmente reconhecido é somente o que significa pensar, ser e eu, quer dizer, não isto ou aquilo, mas a forma da representação ou da recognição [...]. É porque todo mundo pensa naturalmente que se presume que todo mundo saiba implicitamente o que quer dizer pensar. A forma mais geral da representação está, pois, no elemento de um senso comum como natureza reta e boa vontade (Eudóxio e ortodoxia). O pressuposto implícito da Filosofia encontra-se no senso comum como cogitatio natura universalis, a partir do qual a Filosofia pode ter seu ponto de partida. (DELEUZE, 2006b, pp.191-192).
Para Deleuze, aprender não se reduz às verdades apreendidas pela inteligência por meio do uso comum das faculdades. Muito mais do que isso, aprender diz respeito a chegar ao limite dessas mesmas faculdades: percepção, memória, imaginação, inteligência e pensamento podem simplesmente estar atuando de forma voluntária, dentro de uma zona de normalidade e conforto. Ou seja, somente quando essas faculdades se veem diante do encontro com o diferente e com o inusitado gerados a partir dos signos (afectos) é que elas podem ir além do seu uso comum. Por isso, Deleuze escreve: “Há sempre a violência de um signo que nos força a pensar, que nos tira a paz. (DELEUZE, 2003).
Segundo Deleuze, o mundo não é algo dado, mas sim, algo a ser decifrado e decifrá-lo é um dom. (DELEUZE, 2003, p. 25). E não há outro caminho para aprendermos a decifrá-lo a não ser pelos encontros. Porém, estes encontros podem vir carregados de crenças que, de certa forma, nos distanciam do conhecimento. Como vimos, um afecto é um signo. Uma marca, um efeito que pode ter vários sentidos. “Aprender diz respeito essencialmente aos signos”, nos diz Deleuze. Toda aprendizado é um decifração de signos. Não há aprendizado que não passe por este processo de significação, pelo ato de capturar um signo, de apreender um signo:
Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente “bom em latim”, que signos (amorosos, ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviram de aprendizado? (DELEUZE, 2003, p. 21).”
Esse artigo está aqui: http://www.publikador.com/filosofia/henrique1234/2014/08/o-problema-do-aprendizado-e-o-aprendizado-como-problema/